capa de Pele Negra, Máscaras Brancas
As vezes, entender um artista contemporâneo requer certas leituras. Principalmente quando se trata de um como o Yinka Shonibare (post de 2 de outubro), voraz pesquisador de assuntos históricos e que tem como sua literatura formativa “Heart of Darkness” de Joseph Conrad, “Orientalism” de Edward Said e “Pele Negra, Máscaras Brancas” de Frantz Fanon, além dos clássicos de Shakespeare e Dickens.
Acabo de ler o de Fanon. Esse livro foi escrito em 1952 e causou um enorme impacto quando foi publicado. Tornou-se uma grande referência para os movimentos anticolonialistas no mundo e também para os movimentos Black Power, Black Panthers e outros movimentos civis americanos que viriam a surgir nos anos 60.
Frantz Fanon nasceu na Martinica, ilha do Caribe que pertence à França, em 1925. Serviu o exército francês na 2ª Guerra Mundial e depois foi estudar medicina em Lyon, especializando-se em psquiatria. Além de medicina, estudou também filosofia e literatura, devorando as obras de Hegel, Lenin, Kierkegaard, Heidegger e Sartre, referências que aparecem em abundância no livro. Depois dos estudos, Fanon foi morar na Argélia e trabalhou como médico-chefe de uma clínica. Se engajou na luta pela independência da Argélia, participando da Frente de Libertação Nacional. Em 1961 descobriu que tinha contraído leucemia e escreveu seu outro célebre livro “Les Damnés de la Terre” (“Os condenados da terra”). Morreu precocemente no mesmo ano, um ano anterior à independência da Argélia.
Frantz Fanon escreveu “Pele Negra, Máscaras Brancas” quando ainda estava na França. Quando o grito de cólera pelo racismo que encontrou na metrópole já havia se transformado em reflexões e análises. Fanon fala sobre a relação entre o colonizador (branco) e o colonizado (negro), a psicologia do colonizado, e finalmente desmistifica o complexo de inferioridade e o fator de dependência do colonizado para que se quebre este círculo vicioso e se abra o olho para um mundo de originalidade e força essencial do africano (ou do colonizado), tendo como inspiração o movimento poético da Négritude de Aimé Césaire (nascido na Martinica como Fanon), Léopold Sédar Senghor (que depois se tornou presidente do Senegal) e Léon Damas dos anos 30. O livro é forte, muito forte. A crítica é tão agressivamente direcionada ao branco que fala em linguagem de criança quando se dirige ao outro (o negro) quanto ao negro que veste a máscara branca para poder existir para o outro (o branco). É claro que se não houvesse a opressão do colonizador, ou do branco, nunca haveria a necessidade da máscara (afinal, foram cinco séculos de colonização e mais de 10 milhões de africanos escravizados, espalhados a força, brutalizados e massacrados), mas Fanon combate de frente essa atitude e com toda a sua força, todo o seu intelecto e toda a sua sensibilidade, deseja que o mundo caminhe em direção a uma nova humanidade.
Assunto defasado em épocas de Obama? Não. Não quando se vê hoje as mesmas atitudes que Fanon condenava 50 anos atrás. O branco não deixou de ser o colonizador e o negro tampouco deixou de ser o colonizado. Ontem numa loja de tênis no centro de São Paulo, onde só tem vendedores jovens, bem jovens, um deles grita em voz bem alta, do meio da loja lá pro fundo para um outro vendedor, “ô neguinho, vc chegou, neguinho! Aí, bate aqui, neguinho!” E o colonizado aceita o apelido e faz o cumprimento, com um sorriso amargo, apesar dos cinquenta anos que se seguiram depois da aparição de “Pele Negra, Máscaras Brancas”, da suposta democracia racial brasileira e, finalmente, do Obama. Essa cena não é nenhuma cena rara, onde as pessoas em volta se escandalizaram nem nada, é uma cena corriqueira, comum. O “branqueamento” das sociedades continua a existir de forma sutil e as vezes não tão sutil. A relação do colonizado com o colonizador se aplica nesses fenômenos corriqueiros, como apelidos. Neguinho, Nega, Japa… Aqueles que defendem o uso dizem que é carinhoso. Justificam-se também pelo fato dos próprios apelidados se auto-denominarem com esses nomes enclausuradores. Então, aqui se aplica a psicologia da máscara branca, pois se auto-denegrindo, o colonizado entra no time do colonizador, tornando-se aceito em seu grupo. Aceitando ser “Y a bon Banania”.
Talvez um presidente americano mulato, pardo, sem cor definida, como os manequins sem cabeça das instalações de Yinka Shonibare, sirva como símbolo de um mundo que já tomou a direção para uma nova humanidade, como tanto desejou Fanon, e que apenas ainda existem pessoas que não perceberam que o mundo mudou.
Hoje tem o último debate presidencial americano às 22h00. Eu vou assistir.