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Um olhar junguiano sobre a Mitologia Japonesa

Este é um trabalho que fiz para um grupo de estudos sobre pensamento Junguiano / psicologia analítica da qual participo. Para quem tiver interesse… O conteúdo tem muitos termos específicos da área, obviamente, mas não faço uma explicação de cada termo, pois é um texto especializado, diferentemente dos meus outros textos do blog. Mas quem se interessar em questionar tanto os termos quanto o conteúdo, estou aberta a discussões.

UM OLHAR JUNGUIANO SOBRE A MITOLOGIA JAPONESA

A mitologia japonesa se baseia no pensamento xintoista, uma religião animista, que considera que todos os elementos do cosmos, da natureza, dos seres vivos e dos fenômenos naturais têm alma e são respeitados e cultuados, assim como os são todos os ancestrais que também possuem alma imortal. Esta era a cosmovisão dos antigos habitantes do Japão. Porém, a mitologia japonesa absorveu uma série de influências provenientes da China, Pérsia, de regiões do sudeste da Ásia e até mesmo da mitologia cristã, por causa de sua natureza aberta e acolhedora de outras culturas na época. Por isso, encontramos nessa mitologia inúmeros episódios e simbologias muito semelhantes a de outras do mundo. Xinto se escreve com a combinação do ideograma deus e do ideograma caminho, significando o Tao dos deuses.
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O COMEÇO – O MITO DA CRIAÇÃO

Antes de tudo, o mundo era um ovo. Não existia nem céu nem terra, nem claro nem escuro. Aos poucos, do conteúdo desse ovo, o que era claro e puro foi subindo para cima, tornando-se o céu. E o que era escuro, turvo e pesado foi afundando e tornou-se  a terra.

A TRINDADE PRIMORDIAL

O primeiro deus que surgiu foi o Ame no Minakanushi no Kami, Deus Mestre do Centro Celestial. Em segundo lugar, surgiram os deuses da geração de vida, Takami Musuhi no Mikoto (deus com qualidade yang) e Kami Musuhi no Mikoto (deus com qualidade yin). Estes deuses e outros que vieram depois habitam a terra dos deuses, Takamagahara (Campo Celestial). Ambas as expressões “no Kami” e “no Mikoto” significam “deus (ou deusa) de”. Em geral, “no Kami” denomina os deuses que estão fora da esfera da existência humana e “no Mikoto”, por sua vez, é o título dado aos deuses que de alguma forma interagem com o povo e com os quais o povo se sente mais próximo.
A mitologia japonesa divide os deuses em três tamanhos, os deuses gigantes, os deuses semi-gigantes e os deuses de tamanho natural, isto é, do tamanho dos humanos. Esses deuses de tamanho natural são, por exemplo o deus de uma montanha específica, o deus daquele rio, o deus daquele grão que é consumido ali pelo povo daquela terra, deuses esses que governam elementos da natureza e que tenham uma ligação direta com a vida cotidiana do povo.
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A CRIAÇÃO DO JAPÃO

densyo-pic-big002Os irmãos Izanagi no Mikoto (Deus que Convida) e Izanami no Mikoto (Deusa que Convida), deuses gigantes, recebem a ordem dos deuses superiores para criarem o Japão. Nesse momento, a terra era uma massa oceânica viscosa. Os dois deuses vão até a ponte que une o céu e a terra, a Ponte Sagrada Flutuante e dali, Izanagi mergulha a lança sagrada cravejada de pedras preciosas e mistura com ela a massa oceânica viscosa. Quando a lança é retirada do mar, o respingo de água salgada se coagula e forma a Ilha Onokoro. densyo-pic-big003
Izanagi e Izanami olham para aquela ilha e decidem descer sobre ela. Eles se tornam os primeiros deuses a descerem na terra. Nesse momento eles decidem criar um país e primeiramente constroem uma coluna muito alta no meio da ilha, que serviria para os deuses descerem do céu para a terra. Em torno dessa coluna sagrada (Ame no Mihashira) eles constroem um palácio para eles. Izanagi e Izanami circundam a coluna sagrada, cada um na direção oposta e quando eles se encontram, Izanami, a deusa, fala primeiro, “que lindo homem você é” e depois Izanagi, o deus, responde, “que linda mulher você é”, assim se tornam marido e mulher. Da primeira união deles nasce um filho indesejado, Hiruko. O casal pergunta aos deuses superiores o que tinham feito de errado e os deuses respondem que nunca deve ser a mulher a convidar primeiro o homem. O homem precisa tomar a iniciativa. Depois disso, o casal obedece e da união deles nascem vários deuses que criam o restante do Japão e controlam e protegem o povo que habita essa terra.densyo-pic-big005
Além dos deuses das terras, de Izanagi e Izanami também nasceram os deuses da montanha, do rio, do mar, da árvore, da grama, do vento, do grão, etc., criando assim um mundo rico e fértil. Quando Izanami deu à luz o deus do fogo Kagutsuchi, foi morta queimada pelo filho durante o parto. Izanagi, furioso, mata o filho cortando-o inteiro. Nesse momento, nascem muitos outros deuses de dentro do corpo morto de Kagutsuchi. densyo-pic-big007

O SURGIMENTO DA VIDA E DA MORTE

De tanto querer rever a esposa, Izanagi vai até a entrada da terra dos mortos, Yomi no Kuni, e pede para que Izanami volte com ele. Izanami responde que vai pedir permissão aos deuses da terra dos mortos e desaparece. Antes de desaparecer, ela diz ao Izanagi que ele veio tarde, pois já havia comido a comida preparada na terra dos mortos. densyo-pic-big009Izanagi fica preocupado e ansioso e vai adentrando a escura terra dos mortos atrás de Izanami, colocando fogo num dos dentes do pente que segura seu cabelo para servir de lanterna. Quando chega ao quarto de Izanami, fica chocado ao ver o corpo todo apodrecido de sua então belíssima esposa. Ao lado de onde ela dormia, havia também um deus do trovão com oito corpos que havia nascido da própria Izanami. Quem já comeu da comida da terra dos mortos já faz parte dela, foi por isso que ela deu à luz um deus que traz morte e destruição aos povos.
Espantada com a repentina luz da lanterna do marido, Izanami acorda e fica furiosa ao saber que ele a viu daquela forma, toda podre e cheia de vermes saindo de seu corpo. Izanagi, espantado e com medo, foge correndo. Enraivecida e envergonhada, Izanami dá ordens às Shikome (mulheres feias) para caçarem seu marido. No que Izanagi joga a sua coroa contra as Shikome para espantá-las, esta se transforma em cachos de uvas selvagens. As Shikome param para devorar as uvas, mas depois continuam correndo atrás de Izanagi. densyo-pic-big010Quando as vê aproximando-se novamente, Izanagi joga um outro dente do seu pente, que por sua vez, se transforma em brotos de bambu. Como o broto de bambu tem várias camadas de casca, as Shikome se atrasam muito para come-los e ficam para trás. Quando Izanagi já está quase na entrada da terra dos mortos, vê que o deus do trovão, filho de sua esposa, é quem está dessa vez atrás dele com um exército de mil e quinhentos soldados do submundo. No desespero, Izanagi joga um pêssego que encontra ali contra os seus perseguidores e assim consegue finalmente passar pela entrada da terra dos mortos e passar para o lado claro. A enfurecida Izanami grita do outro lado que despovoará o mundo dos vivos matando mil pessoas por dia e Izanagi replica-lhe que a cada mil pessoas mortas, outras mil e quinhentas serão criadas. Nesse divórcio entre o casal divino estabelece-se a noção de vida e morte.densyo-pic-big011

OS NASCIMENTOS DO SOL, DA LUA E DA TEMPESTADE

Depois de voltar da terra dos mortos, Izanagi passa por um ritual para se purificar, pois a terra dos mortos é considerada um lugar sujo. Durante o ritual que acontece na água salgada do mar, nascem vários deuses de Izanagi. No fim da purificação, quando ele pensa em lavar o rosto, primeiro lava o olho esquerdo e dali nasce Amaterasu Oomikami, deusa do sol. Depois, ao lavar o olho direito, nasce dali Tsukuyomi no Mikoto, deusa da lua. Em seguida, ao lavar o nariz, nasce Susanoo no Mikoto, deus da tempestade. densyo-pic-big012Izanagi ficou muito contente em ter criado três deuses tão poderosos e ordenou que Amaterasu governasse o Takamagahara, o céu, Tsukuyomi a noite e Susanoo os oceanos. Porém, como o oceano fica em baixo, Susanoo se revoltou contra o pai considerando o seu poder inferior aos de suas  irmãs.
Para se rebelar, o irmão mais novo vivia do jeito que queria, sem querer saber do trabalho de governar os oceanos. Assim, ele deixou a barba crescer até o peito e passava dia e noite chorando e atormentando o pai dizendo que queria descer até a terra dos mortos para ver a mãe. densyo-pic-big013Izanagi decide expulsar o filho mais novo para a terra dos mortos por causa de seu mal comportamento. Com o pretexto de se despedir de sua irmã mais velha, Susonoo vai até o céu. densyo-pic-big014Amaterasu, já preparada para se defender, vestida de guerreiro, fica furiosa e grita “que história é essa de você vir até aqui sem a minha permissão?!” Susanoo ignora a sua irmã e se instala no céu, pratica todo tipo de atos violentos como devastar a agricultura e, no fim, acaba matando uma tecelã que confecciona as roupas sagradas para os rituais de Amaterasu.

O SURGIMENTO DAS ESTAÇÕES DO ANO

A deusa do sol, irada com os atos de seu irmão mais novo, se esconde dentro de uma caverna, deixando o mundo sem luz. Os outros deuses que viviam em Takamagahara se reúnem para discutir o que fazer para tirar a deusa do sol da caverna e devolver vida ao mundo, que sem o sol, se tornou um mundo só de noite e escuridão. O deus da sabedoria, Omohikane no Kami, planeja uma festa com a deusa Amenokoyane no Mikoto dançando uma dança muito divertida. A festa começa e vendo a deusa dançar, todos os deuses caem na gargalhada e riem sem parar, parecendo se divertir muito. Amaterasu, de dentro da caverna, ouve-os e, curiosa para saber do que tanto eles riem, decide abrir a porta de rocha da caverna. densyo-pic-big019Nesse momento, o deus da força física, Amenotajikarao no Kami, pega a mão da deusa do sol e tira-a de dentro da caverna para fora. Para que ela nunca mais torne a se esconder dentro da caverna, o deus Futotama no Mikoto se encarrega de fechar para sempre a porta da caverna com uma corda sagrada, entoando um mantra mágico. Assim o mundo voltou a receber a luz do sol e o povo voltou a trabalhar nas suas terras como antes.

APROFUNDANDO OS SIGNIFICADOS DOS MITOS

O conceito do ovo cósmico existe em muitas mitologias em diferentes partes do mundo. Mitologias hindu, chinesa, egípcia e finlandesa são alguns exemplos. Todas elas basicamente retratam o estado do caos do universo, o zero, o nada, um estado unificado onde todas as coisas estão autocontidas, não manifestas. O que acontece em seguida, a separação entre o céu e a terra (conceito de dualidade e polarização) a partir desse ovo único também se mostra comum entre essas mitologias. Helena Blavatsky e Rudolf Steiner, em sua teosofia, também sustentam a mesma teoria. Para eles, o ovo cósmico seria o estado da Pralaya (noite de Brâhmâ, período de repouso) que antecede o Manvantara (dia de Brâhmâ, período de manifestação), períodos que se alternam ritmicamente.
Amenominakanushi no Kami (Deus Mestre do Centro Celestial) da Trindade primordial é o equivalente ao Gayomardo da mitologia persa, à prima materia da Alquimia, ao Adam Kadmon (Adão místico e secreto) do misticismo judaico, o Antropos da idéia gnóstica e ao P’an Ku chinês. Todos estes possuem um corpo humano enorme. É o arquétipo do homem cósmico primordial. O xintoismo considera que Amenominakanushi no Kami é a soma e a junção de todas as almas imortais (deuses e ancestrais) que protegem o Japão e seus habitantes. Em outras palavras, podemos considerar que dele fragmenta-se todas as futuras existências, dispersas na matéria, igual à prima materia do processo de transformação alquímica. Marie-Louise von Franz escreveu em Individuação nos Contos de Fada o seguinte:

“Poder-se-ia dizer que todo conhecimento adquirido do mundo exterior é antropomórfico e que, em última instância, corresponde a certos modelos, a estruturas inerentes a nossa constituição psíquica, ou seja, empregando nossa terminologia, as idéias básicas da matemática e da física modernas são representações arquetípicas que emergem do inconsciente coletivo. Por isso se vê claramente porque em todos os textos antigos, Adão, que sob nosso ponto de vista é um símbolo do inconsciente coletivo, está identificado com o macrocosmo. Para essas pessoas, o inconsciente coletivo é idêntico a todo mundo circundante que tem essa forma de um enorme ser humano, ou de um ser humano psíquico.”

O xintoismo considera a geração e a manutenção da vida como sendo o mais sublime dos atos. Os dois deuses Takami Musuhi no Mikoto e Kami Musuhi no Mikoto, os outros dois deuses da Trindade primordial, representam o ato de gerar vida através da união dos opostos. É esse o significado de Musuhi. Takamimusuhi no Mikoto é a parte yang desse aspecto, pertencendo ao céu, e Kamimusuhi no Mikoto é a parte yin do mesmo aspecto, pertencendo à terra. Eles ainda não chegam a ser o masculino e feminino, porém já são uma duplicidade de um único aspecto, um passo adiante do homem cósmico primordial andrógino, por representarem a geração de vida, a própria idéia do manifestar-se.

Podemos comparar os diferentes tamanhos desses deuses com os nossos níveis psíquicos. Os deuses gigantes são aqueles que estão numa esfera inalcançável, tomando uma expressão emprestada do inglês, são “larger than life”, grandes e distantes demais para serem apreendidos na sua totalidade, assim como é o Self. Eles também não interagem com a vida cotidiana dos humanos, mas protegem os habitantes do Japão à distância. Geralmente não são esses os deuses cultuados nos templos xintoistas, justamente por eles estarem presentes apenas no inconsciente do povo japonês. Os deuses semi-gigantes, por sua vez, estariam relacionados à alma humana (anima e animus) e à sombra, que ainda são conteúdos do inconsciente, porém bastante manifestos e vividos. Eles são os deuses do sol (animus), da lua (anima) e da tempestade (sombra). E por último, os deuses de tamanho natural são aqueles que podemos relacionar com o ego e a persona, ligados à vida em sociedade dos humanos. São deuses que governam elementos tanto da sociedade quanto da natureza diretamente ligados à vida cotidiana dos japoneses da época. Poderia dizer que o sol, a lua e a tempestade também o são, mas são muito mais poderosos, pois são eles que controlam os elementos como o rio ou a árvore, estando assim acima deles, assim como a anima, o animus e a sombra são capazes de controlar o nosso ego com tamanha facilidade.

O casal Izanagi e Izanami são a duplicidade de deuses criadores da nação Japão. Além de representar o feminino e o masculino, a duplicidade significa que é uma energia que atinge o limiar da consciência, como explica bem Marie Louise von Franz em A Individuação nos Contos de Fada (pg. 53, 54). Ou seja, é o nascimento da nação Japão que sai do inconsciente que, ao atravessar a Ponte Sagrada Flutuante, os dois deuses cumprem como sua maior missão, manifestando-o na consciência do povo japonês.
Vemos no mito do casal uma semelhança com o de Adão e Lilith da mitologia judaica. Porém menos radical que Lilith, que fica furiosa com a recusa de Adão, Izanami obedece e faz a vontade dos deuses superiores. A diferença também está em Izanagi, não sendo ele a exigir seu direito como Adão. Quem decide que o homem toma a primeira iniciativa são os deuses superiores. Podemos observar um pouco da característica do povo japonês através desse trecho. A obediência incondicional à vontade de uma autoridade é considerada algo importante a ser seguido dentro de uma sociedade, tanto para um homem quanto para uma mulher.

Izanami tem várias outras colegas pelo mundo além de Lilith. Ela representa qualidades muito semelhantes à Nanã da mitologia Yorubá. Nanã é uma deusa muito antiga que existe desde épocas anteriores à cultura Yorubá e foi incorporada quando o povo nagô conquistou o povo de Dahomey, absorvendo sua cultura, seus mitos e seus deuses. Ela é “a senhora dos pântanos”, onde terra (morte) e água (vida) se misturam. Ela representa a dualidade da vida e morte, ou o ciclo da vida e da morte que são, na realidade, a mesma coisa do ponto de vista dessa Grande Mãe. Nanã deu a matéria no começo mas no final quer de volta o que é seu, assim como Izanagi cria o Japão mas no final quer trazer mil vidas para a terra dos mortos.
Há uma lenda que conta que Nanã foi conquistar o reino de Oxalá e acabou se apaixonando por ele. Porém Oxalá ama muito sua esposa, Iemanjá, e não quis saber de Nanã, que por sua vez, embriagou e seduziu Oxalá. Dessa relação “forçada” de Nanã com Oxalá, nasceu Obaluiaê, uma criança indesejada, muito feia e deformada, que foi abadonada e jogada no mar. Hiruko, a primeira criança de Izanagi e Izanami também indesejada como Obaluiaê, fruto de uma relação “mal feita”, foi colocada num barco e jogada no mar para bem longe.
Diz-se no Japão que depois de muito tempo, Hiruko voltou à terra como o(a) Deus(a) Ebisu, cultuado com carinho pelo povo da região de Kansai. É curioso ver que até um personagem que foi considerado indesejado acaba virando um deus e sendo cultuado pelo povo. Essa é uma característica marcante das religiões politeístas e animistas como o xintoismo, que considera que todas as coisas são sagradas, não importando se são positivas ou negativas. Isto reforça a noção junguiana de que deuses são arquétipos e, assim sendo, cada um deles representa uma qualidade específica da psique humana.
As semelhanças de Izanagi com Oxalá, fica por conta do gosto pela pureza. Oxalá se veste de branco e é conhecido por gostar de manter as coisas sempre limpinhas e bonitas. Izanagi também simboliza a pureza, por ser o oposto de sua esposa Izanami, que caiu no mundo dos mortos e se tornou impura. O mundo dos mortos é considerado um lugar sujo pela concepção japonesa.

A fuga de Izanagi do mundo dos mortos encontra fortes semelhanças com o mito de Orfeu da mitologia grega. Orfeu também vai em busca de sua amada Eurídice descendo até o mundo subterrâneo dos mortos. Plutão concorda em devolver Eurídice mas impõe uma condição. Orfeu teria que andar na frente de Eurídice que o seguiria, mas ele jamais poderia olhar para trás enquanto o casal não chegasse ao limite do mundo das trevas. Orfeu, preocupado se sua amada estava mesmo seguindo seus passos, acabou transgredindo as ordens e viu Eurídice se esvair para sempre nas sombras. Segundo Odsson Ferreira em seu site http://www.templodeapolo.net, o grande desencontro de Orfeu foi ter olhado para trás, de ter se apegado à matéria, estando assim, despreparado ainda para a junção harmônica com sua anima, simbolizada por Eurídice.
O fato de Izanagi nunca mais ter resgatado sua esposa depois da fuga, nem mesmo ter encontrado outra esposa, permanecendo solteiro para sempre e fazendo filhos sozinho, pode ser um reflexo do desequilíbrio que se encontra entre o feminino e o masculino na sociedade japonesa. Visto que a mitologia japonesa é viva, quando esta dualidade encontrar um equilíbrio mais saudável entre o povo japonês, quem sabe Izanagi não encontra uma nova esposa?

Após a descida da criadora do Japão para o mundo dos mortos, sua semelhança com Lilith se intensifica muito mais do que no momento da criação do Japão. É curioso ver que Izanami não foi substituída por nenhuma Eva japonesa, permanecendo assim a criadora do Japão, mesmo sendo a raivosa deusa da morte, a Grande Mãe destruidora. Assim como a eternamente rancorosa e enfurecida Lilith prometeu matar os bebês da terra, Izanagi também anunciou sua vingança. As duas são deusas do subterrâneo, representando o lado escuro e impuro do feminino, aquela anima que ainda não foi aceita e incorporada pela sociedade masculina dominante. Faz-se necessário reforçar aqui que não se tratam de qualidades da mulher e sim do feminino.

Ainda sobre a fuga de Izanagi do mundo dos mortos, tentei explorar o significado de cada um desses alimentos que ele joga para escapar da captura de sua ex-esposa. A coroa que se transforma em cachos de uva, a pente que se transforma em brotos de bambu e o pêssego que ele colhe da árvore que se encontra ali mesmo e joga. Poderíamos facilmente pensar nas uvas como um elemento dionisíaco, simbolizando a transformação e a transcendência. Mas não podemos fazer uma tradução direta desses elementos sem considerar o seu significado dentro daquela sociedade em questão.
A uva, matéria prima do vinho no ocidente, pode não ter necessariamente esse significado no Japão, já que a matéria prima do vinho japonês, o sake, é o arroz. Portanto, a uva pode ter algum outro simbolismo que, até onde esta pesquisa conseguiu chegar, não fica muito claro. Mas visto que a referida coroa é feita de cipó (planta trepadeira), usada como decoração ou proteção pelos deuses, esta tem uma relação direta com as uvas, pois elas também são frutas de plantas trepadeiras que necessitam de suporte para se manterem eretas e crescerem em direção à luz. Estes elementos fazem lembrar o ayahuaska, uma poção feita com uma mistura de ervas trepadeiras da amazônia, que significa “trepadeira da alma”. Como é largamente difundido no Brasil, o ayahuaska é usado em rituais xamânicos com o objetivo de expandir a consciência para alcançar a transcendência. Ele aparece em diversas mitologias da América do Sul, como na dos índios Tukano da Colômbia e na dos Desana, povo indígena da região do Rio Negro no noroeste amazônico. Poderíamos dizer que o tal suporte que estas plantas trepadeiras necessitam para encontrar luz, no sentido da transcendência ou da Consciência com C maiúsculo, seria a alma humana.
Não sabemos se no Japão antigo havia o uso de plantas trepadeiras nos rituais xamãnicos. Mas o que sabemos é que até o período antes da organização da mitologia japonesa em forma de texto, o xamanismo era largamente praticado e até era a única forma de religião no Japão antes da entrada do budismo no século VI. Portanto, é bem provável que a coroa de planta trepadeira e os cachos de uvas signifiquem mesmo a transcendência, o contato com o mundo espiritual e primordial.
O segundo elemento que Izanagi joga é um dente do seu pente que, por sua vez, se transforma em brotos de bambu. O bambu é uma planta muito importante em todo o leste da Ásia e não poderia ser diferente no Japão. Esta planta representa o velho e o novo ao mesmo tempo por causa de seu aspecto intacto ao longo de sua vida, a juventude eterna e a longevidade. No Japão, é usado como barreira contra o mal, pois acredita-se que o bambu neutraliza as vibrações nocivas. Os pentes também provavelmente eram feitos de bambu, já que até hoje no Japão esse é o material mais usado para esse fim.
Portanto, os objetos jogados por Izanagi têm relação direta com os alimentos correspondentes. Então por que tais objetos precisam se transformar em alimentos? Segundo um insight esclarecedor do Dr. Bernardo de Gregório, alimentar essas mulheres  do submundo significa ceder ao feminino, pois Izanagi estaria jogando objetos importantes para ele como coroa e pente. Vemos então que mesmo para um masculino totalmente desarmônico com o feminino, se mostra necessário as vezes ceder e alimentar o feminino, mesmo que forçadamente, para escapar de alguma situação indesejável. Izanagi alimenta o feminino com a transcendência e a juventude eterna. A transcendência é o espírito, assim como é a juventude eterna, pois somente o espírito vive eternamente. E o espírito é andrógino, não tem qualidade polarizada. Assim começa a fazer sentido que Izanagi, símbolo do masculino, joga objetos andróginos para alimentar o feminino, equilibrando assim, as polaridades.
O pêssego, o terceiro elemento jogado por Izanagi para escapar do submundo não tem o mesmo significado que os dois primeiros. O pêssego já é um alimento por si só e dessa vez, ele não o joga contra as mulheres feias e sim contra o deus do trovão e seu exército. Segundo o pensamento chinês, o pêssego é o fruto de uma árvore muito dura, é uma fruta do outono e é branco, por isso, é um elemento metal dentro da teoria chinesa dos cinco elementos. Um elemento metal é tido como poderoso contra o mal e é assim que Izanagi consegue vencer o exército do submundo liderado pelo deus do trovão e escapar para o outro lado.

O mito de Amaterasu Oomikami, a deusa do sol, que se esconde e o mundo torna-se escuro é talvez o mais famoso e popular da mitologia japonesa. Também é considerado um mito muito importante para a consagração dessa deusa como a origem da família imperial japonesa. Amaterasu Oomikami significa a grande deusa (o grande deus) que brilha do alto do céu. A mitologia japonesa foi organizada em forma de literatura durante o século VII em um livro chamado “Kojiki (Escritas sobre assuntos antigos)”, considerado o livro mais antigo do Japão. Depois ela foi reescrita no “Nihon Shoki (Primeiras crônicas japonesas)”, o segundo livro mais antigo do Japão, mais completo do que o “Kojiki” e escrito ao longo do século VIII. Os dois livros retratam não apenas as mitologias como também o que é considerado a continuação dessa mitologia, as histórias dos primeiros imperadores do Japão.
Amaterasu Oomikami, deusa do sol, era, antes da organização dos mitos no livro Kojiki, venerado como um deus masculino, um deus guerreiro corajoso e forte. Isto corresponde com a maioria das mitologias que consideram o sol como tendo uma qualidade masculina, em contraposição com a lua feminina. Porém, no final do século VII quando Kojiki foi escrito, o Imperador Tenmu havia conquistado o trono ao vencer uma grande guerra e estava empenhado em manter o Japão estável, sem confrontos internos. Quem o aconselhava na política era a sua talentosa e inteligente esposa, a Imperatriz Uno no Himemiko, que se tornou ela própria a Imperadora Genmei após a morte de seu marido. Essas são as razões pelas quais Amaterasu Oomikami se transformou de deus guerreiro do sol à deusa corajosa e também generosa do sol, uma deusa com aspectos de uma sacerdotisa.

Neste mito, encontramos um paralelo entre a Amaterasu deusa do sol japonesa e Deméter, a deusa da fertilidade da mitologia grega. Deméter ficou enfurecida quando sua amada filha Perséfone foi raptada por Hades para o seu reino subterrâneo e decidiu não voltar para o Olimpo enquanto sua filha não lhe fosse devolvida. Tornou a terra infértil, os grãos não germinaram, matando o gado e a população que ficaram sem comida e sofreram de fome e doenças. Zeus pediu a Hades que devolvesse Perséfone para reparar a situação na terra. Hades concordou, mas fez Perséfone comer um bago de romã, prendendo-a no reino subterrâneo para sempre, já que quem come a comida de um determinado local passa a fazer parte daquele lugar para sempre. Com isso, Perséfone passaria um período do ano com a mãe e outro com Hades. O período em que a filha de Deméter sai do subterrâneo passa a ser primavera, quando os grãos brotam, saindo também da terra. O outro período é o da semeadura de outono, quando os grãos são enterrados assim como Perséfone volta para debaixo da terra no reino de seu marido.
Embora os enredos sejam um pouco diferentes, os dois mitos falam sobre o símbolo contínuo de morte e ressurreição. O mito japonês simboliza a importância do sol como doador de vida, mas também o fato de que esse sol também morre e renasce. O pensamento xintoista ensina que é preciso viver com alegria (os deuses se divertindo e rindo) e com espírito comunitário (o reaparecimento de Amaterasu é fruto da união dos atos de quatro deuses) para que o sol, que se escondeu no inverno, reapareça na primavera. Em japonês, para designar uma pessoa alegre, se usa a expressão “pessoa clara, luminosa”, uma qualidade tida como importante pelo xintoismo. Existe no Japão uma importante cerimônia chamada  Chinkonsai que acontece no solstício de inverno. Esta cerimônia, que acontece nos importantes templos xintoistas ligados à família real, tem o significado de aumentar o poder enfraquecido do imperador, que é considerado descendente direto da deusa do sol, ou mesmo de renovar o seu poder, assim como o sol antigo morre e nasce um novo sol nesse dia do solstício de inverno.

ORIGEM ÚNICA DA HUMANIDADE

Apesar de o povo japonês ter uma imagem fechada para o ocidente, com tradições milenares próprias, na realidade é um povo totalmente feito de misturas e influências. O Japão é uma ilha e recebeu, durante séculos, influências, culturas, mitologias e povos de todos os lados. Somente na era Edo, durante 240 anos (de 1616 a 1858) permaneceu isolado proibindo qualquer contato com estrangeiros exceto alguns grupos holandeses e chineses, mas fora esse período, o Japão era e continua sendo uma esponja que absorve o mundo. O que o torna único é que seu povo tem um enorme talento em absorver o que vem de fora e transformá-lo em algo autêntico, injetando a sua alma.
É curioso observar como os povos antigos tinham visões semelhantes em relação ao mundo e como as representações simbólicas podem se misturar tanto entre povos tão distintos quanto os nagôs e os japoneses.
Acredito que isto seja mais uma demonstração de que somos todos originários de uma só raiz. E que, o momento em que nos encontramos, cheio de diferenças e intolerâncias, cederá lugar a uma época de unificação, de volta ao Uno, muito lentamente, mas certamente.